quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Se a fábula faz sentido, é verdade

Associamos o nome Pitágoras a um teorema que, a bem da verdade, não deveria ter nome. Serafina Cuomo, cientista italiana especializada em história da matemática, diz que o homem contemporâneo deseja tanto saber quem fez isso primeiro que chega ao absurdo de inventar para si mesmo uma história que não aconteceu.


Quem primeiro teve a ideia do teorema de Pitágoras? Muitos acham que foi um sujeito chamado Pitágoras, um grego que viveu há vários séculos. Menos gente acha que foi alguém da irmandade pitagórica e que, para simplificar, podemos atribuir o teorema a Pitágoras. Serafina Cuomo, historiadora italiana especializada em história da matemática entre gregos e romanos, e professora na Birkbeck Universidade de Londres, diz que jamais saberemos quem inventou o teorema de Pitágoras. Diz também que, só de fazer essa pergunta (quem foi o primeiro?), passamos recibo da época em que nascemos: depois do século 16. "Entre os 
antigos gregos e romanos", diz Serafina, "havia maior modéstia, ou, na falta de palavra melhor, havia maior cavalheirismo. Para um autor daquela época, era comum não atribuir uma descoberta a si mesmo, assim como ser econômico ao reconhecer suas fontes. Euclides, por exemplo, não citou nenhuma pessoa em Os Elementos; ele não citou nem ele próprio. Não estou certa de quando surgiu essa idéia de que a primazia sobre uma descoberta matemática é importante, mas ela se fortaleceu conforme a matemática foi se transformando numa empreitada de instituições, isto é, foi se transformando numa busca acadêmica." 

Serafina traz à tona a história do teorema de Pitágoras para fazer seu interlocutor pensar: o que sabemos sobre a história da matemática é, na verdade, uma colagem extravagante de uns poucos fatos e de muitas versões. Sendo assim, o historiador moderno tem de assumir um papel desconfortável, e muitas vezes antipático: não o de dizer "Não foi assim que aconteceu; eis que vou lhe dizer agora o que aconteceu", mas sim o de dizer "Não foi assim que aconteceu; eis que não vou lhe dizer como aconteceu, porque não sei, e, aliás, acho que ninguém jamais saberá". 

É possível substituir versões erradas do passado pelas certas? 

Nem sempre. O teorema de Pitágoras é um exemplo: é uma versão que faz sentido para o europeu moderno [Serafina inclui entre europeus todos os povos que falam línguas europeias], e por isso é quase impossível substituir a versão errada pela correta. 

Sabemos que as afirmações a respeito de triângulos retângulos, inclusive o teorema de Pi tágoras, eram conhecidas muito antes de Pitágoras na Mesopotâmia e no Egito, por exemplo.   Naquela época, o teorema era usado para vários propósitos. Por exemplo, para fazer afirmações místicas: visto que os números inteiros 3, 4 e 5 satisfazem o teorema [5² = 3² + 4²], eram tidos como números com poderes mágicos. Várias teorias cosmológicas antigas, mais antigas que Pitágoras, usam o triângulo 3-4-5 como referência. Tais triângulos  também eram muito usados nas medições de terras, pois podemos calcular mais ou menos a área de qualquer pedaço de terra, não importa que formato tenha, com a ajuda de vários triângulos retângulos. E podemos usá-los como Euclides os usou em Os Elementos, isto é, como um dos principais tijolos sobre os quais construir outras afirmações matemáticas. Euclides não mencionou Pitágoras; aliás, não mencionou ninguém. [Euclides viveu uns 250 anos depois de Pitágoras.] Acho que nunca saberemos quem descobriu o teorema de Pitágoras. 

Por que tantos dizem que Euclides mencionou Pitágoras? 

Esse é um erro comum até mesmo entre historiadores - não entre os especializados em matemática, é claro. Euclides não mencionou ninguém. Nesse sentido, Os Elementos é um livro sem graça. Mas existem muitas cópias e edições de Os Elementos, tanto antigas quanto mais recentes, que são cópias ou edições anotadas. Os autores e editores dessas edições anotadas atribuem o teorema de Pitágoras a Pitágoras, e atribuem outros teoremas e afirmações a outras pessoas. 

Se não me falha a memória, a primeira pessoa a atribuir o teorema de Pitágoras a Pitágoras foi o historiador Diógenes Laércio [século 3 depois de Cristo, mais ou menos]; ele é uma das principais fontes de informação a respeito dos filósofos pré-socráticos. Mas não é uma fonte confiável, pois, como era comum na sua época, incluiu em seus trabalhos todo tipo de informação que pôde encontrar. Além de atribuir o teorema de Pitágoras a Pitágoras, e de dizer que Pitágoras deu uma generosa oferta aos deuses em agradecimento pela descoberta, Diógenes também disse que Pitágoras tinha uma perna de ouro, e que podia ser visto em dois lugares ao mesmo tempo! Portanto, não acho que podemos aceitar nenhuma de suas afirmações como verdadeiras, nem mesmo as mais plausíveis. 



Reportagem: Márcio Simões
Editor da Revista Cálculo

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