Uma pechincha de energia

Todo mundo tem pai, mãe, avô, avó, marido ou mulher que reclama da conta de energia elétrica, mas um engenheiro afirma: ela é mais baixa do que deveria ser

Três casais se reúnem num restaurante para jogar conversa fora, e chega o momento de dividir a conta. Pois uma conta de energia elétrica é como a conta dos amigos no restaurante: dois casais beberam Coca Zero, mas um deles bebeu uísque importado. Qual é o jeito mais justo de dividir a conta? No caso da energia elétrica, diz Fábio sismoto El Hage, engenheiro especializado em energia, os brasileiros têm dividido a conta assim: quem bebe uísque paga menos e quem bebe Coca Zero paga mais. "Acho que a conta poderia ser dividida de maneira mais justa", diz Fábio. Existe um órgão regulador do setor de energia elétrica no Brasil, a Aneel. Nem os técnicos da Aneel percebem a injustiça da divisão? Até hoje, diz Fábio, nem eles puderam discernir os motivos da injustiça, pois os métodos de formação de preços de energia elétrica são complicados demais e nos foram legados por gerações de outros técnicos. Flávio presta consultoria para empresas grande e médias, que o contratam para saber se a conta de energia elétrica está correta e se existe algo que possam fazer para baixá-la. Por causa da profissão, Fábio fez mestrado e doutorado que ele revelou essa injustiça: residências pagam menos pela energia do que deveriam, o que provoca várias distorções Brasil afora. 

Menos vira mais 

No doutorado, Fábio estudou uma tarifa especial, chamada de Tusd, ou tarifa de uso do sistema de distribuição. Uma conta de energia elétrica é feita de duas partes, grosso modo: a conta de quem gera a energia elétrica (como a usina de Itaipu) e a conta de quem distribui a energia elétrica. Só que existem várias geradoras e várias distribuidoras: uma compra energia da outra, e elas repassam esses custos ao consumidor. Mas repassam de modo correto? 

Num país grande como o Brasil, boa parte das usinas fica longe do consumidor, e as distribuidoras têm de construir e de manter linhas de alta tensão muito longas. (Linhas de alta tensão são feitas para o transporte de energia por longas distâncias). Depois elas usam linhas de média tensão para levar energia a residências. Em outras palavras: há muito mais residências que empresas, e as residências precisam de energia já prontinha para usar; e há muito menos empresas que residências, e muitas empresas não precisam de energia pronta para usar, porque elas mantêm equipamentos próprios. Na prática, as concessionárias investem mais e gastam mais para atender residências, mas as concessionárias, por ordem da Aneel, cobram mais de empresas. Para ficar na analogia do restaurante, as empresas bebem Coca Zero, mas pagam pelo uísque das residências. 

NO HORÁRIO DE PICO, A OPERADORA EMBUTE NOS PREÇOS A VERBA DE INVESTIMENTOS, MAS AS EMPRESAS EVITAM CONSUMIR ENERGIA

Não é que o método da Aneel não tenha lógica. Ele tem, tanto é que as concessionárias programam computadores para gerar contas segundo essa lógica. Mas o método usado pela Aneel para compor a conta de energia foi criado na década de 1980 e, até que Fábio se interessasse pelo assunto, tal método nunca havia sido questionado; poucas pessoas no Brasil sabiam de cor e salteado como o método funciona. Ele está de pressuposições que, da década de 1980 para cá, se mostraram inválidas. Por exemplo: na década de 1980, o setor de energia era dominado por grandes monopólios, que geravam, transportavam e distribuíam energia elétrica. Hoje, o setor é um emaranhado de empresas independentes, umas públicas e outras privadas. Os impostos mudaram. O método antigo está tão cheio de anomalias que, no horário de pico, em alguns lugares do Brasil os computadores invertem os sinais dos números: menos vira mais, e mais vira menos. Os técnicos têm de mudar esses sinais à mão. 

Para entender como esse método estranho surgiu, Fábio estudou sua história. Foi ao começo e veio vindo, de 1980 para cá, vendo como o método se desenvolveu com o tempo. Precisou de seis meses para entender tudo. Para sua sorte, ele gosta de matemática e de economia: sua tese está cheia de referências a ideias econômicas modernas e a idéias avançadas da estatística. Mesmo assim, Fábio não se arrisca a dizer que o método usado pela Aneel está errado. "Não existe certo e errado", diz Fábio. "Existe mais transparente e menos transparente." Feito o estudo (que Fábio já entregou à Aneel), ele conseguiu imaginar um método melhor, que pode ser implementado com uma simples planilha eletrônica. "Ele é mais simples e mais transparente."

Caminhões voando 

A principal dístorção brasileira ocorre no horário de pico, quando empresas e residências estão usando energia elétrica à toda, e existe a "escassez de capacidade elétrica". Pela lei da oferta e da procura, esse horário deve ser mais caro, pois a concessionária deve incluir no preço os investimentos que só serão vantajosos para quem usa a rede nesse horário. Fábio compara isso a uma estrada: suponha que, no horário de pico, ela fique congestionada. Aí a concessionária faz investimentos para desafogar o trânsito. É mais justo que tais investimentos sejam pagos por quem usa a estrada no horário de pico, e não por quem a usa em outros horários; por exemplo, por meio de pedágios que só funcionam no horário de pico. 

Segundo o método da Aneel, os técnicos põem no cálculo o tipo de rede (alta, média ou baixa tensão), o comprimento da rede até chegar à empresa ou à residência, o horário e o tipo de consumidor (residencíal ou corporativo). Eles pegam o valor do cálculo e, segundo fórmulas bem complicadas, chegam ao preço que empresas e residências devem pagar. Mas aí acontece algo muito estranho: as empresas não pagam. 

No horário de pico, diz Fábio, a energia chega a custar 1.000 reais o megawatt-hora (MW/h). Fora do pico, ela custa entre 100 reais e 200 reais o MW/h. Contudo, se um supermercado instala um motor gerador de energia elétrica a diesel, ele obtém energia a uns 600 reais o MW/h. Sendo assim, o supermercado, como qualquer empresa de juízo, instala um motor gerador e, no horário de pico, usa o gerador no lugar da rede pública de energia elétrica. Muitas outras empresas fazem como o supermercado. É como se, na estrada, os veículos a serviço de empresas voassem no horário de pico, e passassem por cima dos pedágios. 

Resultado? Tanto na estrada como na concessionária de energia elétrica, o tráfego de clientes pagantes fica insuficiente para remunerar os investimentos. No caso das concessionárias, há um agravante: diesel polui. Em resumo, a sociedade brasileira gera energia elétrica limpa (não poluente), porque gera energia por meio de hidrelétricas. Mas, na hora H, troca energia limpa por energia suja (poluente), pois não consegue pensar num jeito mais inteligente de mandar a conta. 

No horário de pico, a Aneel deveria aumentar o custo do megawart-hora para residências e diminuir o custo para empresas. À primeira vista, parece injusto. Quem não tem pai, mãe, marido ou mulher que sai pela casa pagando luzes e perguntando: "Nós viramos sócios da EletroXYZ?" À segunda vista, diz Fábio, é mais justo. 

A sociedade paga por esse problema no mínimo de dois jeitos: [1] se os supermercados não usam a energia no horário de pico, eles não remuneram as empresas de energia bem no horário em que o preço embute uma ver­ba para investimentos, e assim as empresas de energia ficam com menos dinheiro para investir em energia de boa qualidade e limpa; [2] se os supermercados geram energia própria queimando diesel, eles poluem o ar e consomem um recurso natural não renovável (petróleo). 

Mesmo sendo mais simples, Fábio diz que seu modelo, comparado ao de outros países, ainda é complicado. Na Alemanha, por exemplo, a conta de energia elétrica chega duas vezes por ano. A empresa mede o consumo de todos, faz os cálculos para dividir a conta de modo justo, divulga os cálculos e os valores e, finalmente, quando todo mundo diz "OK", manda a conta.

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